Hipnose. Maria Inês Rebelo

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Название Hipnose
Автор произведения Maria Inês Rebelo
Жанр Языкознание
Серия
Издательство Языкознание
Год выпуска 0
isbn 9789898938893



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convicções pessoais, políticas e ideológicas. Acharam por bem, não aprofundar as suas notórias divergências pessoais e profissionais, de modo que existia uma espécie de “acordo de cavalheiros”, que se traduzia em ações, e não em palavras. Talvez por causa disso, estava montado há muitos anos um esquema logístico de “espionagem” de ambas as partes que tinha como propósito conhecer todos os seus movimentos. No entanto, sem que Belling ou Salvaterra pudessem prever, todo o seu esquema de trabalho será colocado em causa com o aparecimento de Anne Pauline. Esta jovem mulher, também sem saber, irá alterar todas as circunstâncias pessoais e profissionais que estavam, há mais de vinte anos, sedimentadas em torno dos dois hipnotizadores.

      Para as pessoas tornava-se igualmente necessário conhecer o passado de Marcus Belling e de Josef Salvaterra.

      Marcus Belling nascera numa família de classe média. Era filho de um médico que não sabia o que era a hipnose, antes de Belling a começar a exercer. O pai, Elias Belling fora um “médico da terra”, ou seja, um dos poucos que decidira praticar a sua profissão fora das grandes cidades para poder ajudar a população que não dispunha de cuidados médicos e possibilidades económicas para recorrer a um médico fora da sua aldeia. Os “médicos da terra” eram, por isso, também chamados de “médicos nómadas” e há sessenta anos não existiam muitos. Anos mais tarde, o pai de Belling acabaria por ser reconhecido por uma Comissão Clínica Nacional como um dos mais competentes médicos do seu país. No entanto, quando Marcus Belling começou a exercer hipnose, o seu pai passou a viver permanentemente angustiado com as polémicas em redor do filho.

      No início da carreira, a postura de Belling em se assumir como um hipnotizador de referência nacional parecia entrar em conflito com o passado da família, mais ligado à medicina tradicional. Como ele bem sabia, nesta época, para a maioria das pessoas, a medicina convencional representava a única forma de terapia e de cura para o mais variado tipo de enfermidades. Depois, com o progressivo mediatismo de Marcus Belling, a classe clínica do país tornou-se uma opositora às teorias que estavam a ser difundidas acerca do efeito terapêutico da hipnose. Deste modo, existiram várias tentativas de descredibilizar o trabalho do famoso hipnotizador e, por essa razão, o pai de Belling fora aconselhado a manter-se afastado destas mesmas polémicas. Por tudo isto, Elias Belling decidira retirar-se da medicina tradicional mais cedo do que o previsto, apesar de uma carreira de sucesso reconhecida a nível nacional. De forma inevitável, a sua carreira acabaria por exercer uma influência dominante no filho que, ainda com receio de se assumir como hipnotizador, começou primeiro por concluir o curso em medicina.

      Já Josef Salvaterra tinha um passado muito diferente do de Marcus Belling. Salvaterra era órfão. A própria palavra era proibida de ser usada no seu discurso diário. Nas diversas entrevistas, raramente o hipnotizador abordava este assunto. Muitos não sabiam, mas ele fora criado com um tio, irmão do seu pai, que possuindo uma pequena fortuna, lhe pagou os estudos que lhe iriam permitir seguir uma estável carreira profissional. Ao contrário de Belling, Salvaterra nunca teve contacto com a medicina, nem mesmo durante a sua formação como hipnotizador. Para alguns, o curso de medicina era como que um alicerce fundamental na área da hipnose, razão pela qual consideravam que a falta deste elemento estruturante na vida profissional de Salvaterra, constituía um obstáculo para que se pudesse tornar um melhor profissional do que Marcus Belling.

      Conhecemos agora o passado de Belling e de Salvaterra, mas pouco sabemos ainda acerca do de Anne Pauline. A primeira vez que a jovem conheceu Marcus Belling, foi neste dia de verão, quando tocou à campainha do seu consultório, situado na Avenida do Sol. Até este mesmo dia de julho, ela apenas o conhecia através da televisão e os dois nunca se tinham encontrado pessoalmente. Todavia, isto era o que julgavam, pois na verdade eles nunca se tinham conhecido nesta vida. Deste modo, torna-se importante falar um pouco mais acerca da misteriosa Anne Pauline Roux, uma jovem mulher de vinte e cincos anos, de grandes olhos verdes brilhantes e de longos cabelos pretos. O seu rosto era oval e às vezes usava óculos que, destacando os seus olhos claros, lhe devolviam uma profundidade estranha e misteriosa à sua própria personalidade. Também ela tinha um passado, tal como os dois hipnotizadores.

      – Cada um de nós tem um passado. Todos os passados são importantes para que possamos ser capazes de definir a nossa própria identidade. – disse-lhe uma vez o pai.

      – E se eu não conhecer o meu passado? O que é que me acontece? – perguntou a curiosa Anne Pauline quando tinha apenas dez anos.

      – Nesse caso, não saberás quem és. – respondeu-lhe o pai.

      – Isso parece assustador. – respondeu a menina.

      Este diálogo com o pai iria sempre manter-se uma viva recordação na mente de Anne Pauline. Foi a partir deste dia que a jovem rapariga prometeu a si mesma, que iria descobrir o seu passado. Ela tinha medo de não saber quem era e, por isso, partiu numa busca incessante por si mesma.

      O passado de Anne Pauline estava ligado ao mar. Era sempre lá que regressava quando as suas angústias interiores não lhe permitiam ver nenhum caminho claro à sua frente. Uma boa razão para isso é que o pai fora pescador a vida toda. A mãe era uma incansável atadora de redes, uma profissão em vias de desaparecimento e que sendo executada por uma mulher, tornava ainda mais particular a sua situação. Ela era uma excelente atadora de redes e na comunidade piscatória comentava-se inclusivamente que ela era a melhor atadora do país. Ela organizava e cozia tão bem que o marido dizia frequentemente que era por causa dela que lhe calhavam mais peixes nas redes. Por outro lado, comentava-se igualmente que o pai de Anne Pauline era um excelente pescador. Alguma coisa nele, que devia ser a intuição, lhe dizia onde devia lançar a rede e por norma encontrava mais peixe do que os seus colegas de profissão. Raramente se enganava. Quando ele decidia lançar as redes numa certa zona do mar, costumava pescar grandes quantidades de todo o tipo de peixes, o que no final do mês significava ter ao seu dispor um orçamento mais avultado.

      A família, por sua vez, era proprietária de um barco de pesca (como todas as famílias da comunidade) chamado “Argo”. A embarcação já tinha pertencido aos avós de Anne, também eles pescadores. Tendo sido deixado em terra firme durante muitos anos, este começou a degradar-se rapidamente. Após a sua restauração, o pai de Anne Pauline decidira dar-lhe o nome de Argo, o que gerou alguma polémica entre as pessoas que diziam que o nome se devia a um filho ilegítimo que ele tivera de uma rapariga que, um dia, aparecera naquela localidade e que desaparecera poucos meses depois sem deixar rasto. Várias vezes os dois foram vistos juntos, mas ninguém podia confirmar uma possível relação. Depois deste acontecimento, o Argo voltou ao mar no seu esplendor. O belo barco estava pintado em cores de arco-íris: de um lado estava desenhado um peixe onde se podia ler a palavra Icthus e do outro, para quem prestasse atenção, estava uma serpente que segurava a sua própria cauda e onde se podia ler, desta vez, a palavra Ouroboros. Ninguém sabia ao certo o que isto poderia significar. O pai de Anne Pauline era considerado inteligente, apesar de não ter estudos e, talvez por isso, algumas pessoas tinham receio de lhe dirigir a palavra. Existia nele uma espécie de reverência, que todos respeitavam, e que raramente colocavam em causa. Por essa mesma razão, nunca ninguém o confrontou com a história do filho ilegítimo e com o significado das estranhas mensagens que ele parecia evocar na sua embarcação. Nem mesmo a própria filha.

      Durante a infância, Anne Pauline tivera muitas oportunidades de viajar com o pai, sentados os dois no Argo, olhando o horizonte. Ao final do dia, alguns cardumes de peixe assomavam à superfície da água como numa última tentativa de ver o pôr-do-sol, também eles admirados com a beleza do mundo. Ao fundo, muitas vezes, apareciam então as gaivotas, esbeltas e curiosas, atraídas pelos peixes que faziam do mar a sua varanda particular para ver o sol uma última vez. Também durante estas viagens, Anne Pauline questionava-se se teria mesmo um irmão ou seriam histórias, uma forma de as pessoas saciarem a sua curiosidade por novidades escandalosas? Por medo, nunca chegou a confrontar o pai com essa história.

      O mar oferecia a Anne Pauline uma dádiva preciosa e que raramente lhe era permitido viver: a paz e tranquilidade interiores. Algo a perseguia. Era algo tão grande que ela tinha dificuldade em o compreender. Na realidade, desde criança que se lembrava de sonhar com imagens estranhas que lhe causavam angústia durante a noite e que não