Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial). Machado de Assis

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Название Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial)
Автор произведения Machado de Assis
Жанр Языкознание
Серия
Издательство Языкознание
Год выпуска 0
isbn 9782291092704



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      A transação

      Vaguei pelas ruas e recolhi-me ás nove horas. Não podendo dormir, atirei-me a ler e escrever. Ás onze horas estava arrependido de não ter ido ao theatro, consultei o relogio, quiz vestir-me, e saír. Julguei, porém, que chegaria tarde; demais, era dar prova de fraqueza. Evidentemente, Virgilia começava a aborrecer-se de mim, pensava eu. E esta idéa fez-me successivamente desesperado e frio, disposto a esquecel-a e a matal-a. Via-a d’alli mesmo, reclinada no camarote, com os seus magnificos braços nús, — os braços que eram meus, só meus, — fascinando os olhos de todos, com o vestido soberbo que havia de ter, o collo de leite, os cabellos postos em bandós, á maneira do tempo, e os brilhantes, menos luzidios que os olhos della... Via-a assim, e doía-me que a vissem outros. Depois, começava a despil-a, a pôr de lado as joias e sedas, a despenteal-a com as minhas mãos sofregas e lascivas, a tornal-a, — não sei se mais bella, se mais natural, — a tornal-a minha, sómente minha, unicamente minha.

      No dia seguinte, não me pude ter; fui cedo á casa de Virgilia; achei-a com os olhos vermelhos de chorar.

      — Que houve? perguntei.

      — Você não me ama, foi a sua resposta; nunca me teve a menor somma de amor. Tratou-me hontem como se me tivesse odio. Se eu ao menos soubesse o que é que fiz! Mas não sei. Não me dirá o que foi?

      — Que foi o que? Creio que não houve nada.

      — Nada? Tratou-me como não se trata um cachorro...

      A esta palavra, peguei-lhe nas mãos, beijei-as, e duas lagrimas rebentaram-lhe dos olhos.

      — Acabou, acabou, disse eu.

      Não tive animo de arguir, e, aliás, arguil-a de que? Não era culpa della se o marido a amava. Disse-lhe que não me fizera cousa nenhuma, que eu tinha necessariamente ciumes do outro, que nem sempre o podia supportar de cara alegre; accrescentei que talvez houvesse nelle muito de dissimulação, e que o melhor meio de fechar a porta aos sustos e ás dissensões era aceitar a minha idéa da vespera.

      — Pensei nisso, acudiu Virgilia; uma casinha só nossa, solitaria, mettida n’um jardim, em alguma rua escondida, não é? Acho a idéa boa; mas para que fugir?

      Disse isto com o tom ingenuo e preguiçoso de quem não cuida em mal, e o sorriso que lhe derreava os cantos da boca trazia a mesma expressão de candidez. Então, afastando-me, respondi:

      — Você é que nunca me teve amor.

      — Eu?

      — Sim, é uma egoista! prefere ver-me padecer todos os dias... é uma egoista sem nome!

      Virgilia desatou a chorar, e para não attrahir gente, mettia o lenço na boca, recalcava os soluços; explosão que me desconcertou. Se alguem a ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-me para ella, travei-lhe dos pulsos, susurrei-lhe os nomes mais doces da nossa intimidade; mostrei-lhe o perigo; o terror apaziguou-a.

      — Não posso, disse ella dahi a alguns instantes; não deixo meu filho; se o levar, estou certa de que elle me irá buscar ao fim do mundo. Não posso; mate-me você, se o quizer, ou deixe-me morrer... Ah! meu Deus! meu Deus!

      — Socegue; olhe que podem ouvil-a.

      — Que ouçam! Não me importa.

      Estava ainda excitada; pedi-lhe que esquecesse tudo, que me perdoasse, que eu era um doudo, mas que a minha insania provinha della e com ella acabaria. Virgilia enxugou os olhos e estendeu-me a mão. Sorrimos ambos; minutos depois, tornavamos ao assumpto da casinha solitaria, em alguma rua escusa...

      65

      Olheiros e escutas

      Interrompeu-nos o rumor de um carro na chacara. Veiu um escravo dizer que era a baroneza X. Virgilia consultou-me com os olhos.

      — Se a senhora está assim com dor de cabeça, disse eu, parece que o melhor é não receber.

      — Já se apeou? perguntou Virgilia ao escravo.

      — Já se apeou; diz que precisa muito de falar com sinhá!

      — Que entre!

      A baroneza entrou dahi a pouco. Não sei se contava commigo na sala; mas era impossivel mostrar maior alvoroço.

      — Bons olhos o vejam! explodiu ella. Onde se mette o senhor que não apparece em parte nenhuma? Pois olhe, hontem admirou-me não o ver no theatro. A Candiani esteve deliciosa. Que mulher! Gosta da Candiani? É natural. Os senhores são todos os mesmos. O barão dizia hontem, no camarote, que uma só italiana vale por cinco brazileiras. Que desaforo! e desaforo de velho, que é peor. Mas porque é que o senhor não foi hontem ao theatro?

      — Uma enxaqueca.

      — Qual! Algum namoro; não acha, Virgilia? Pois, meu amigo, apresse-se, porque o senhor deve estar com quarenta annos... ou perto disso... Não tem quarenta annos?

      — Não lhe posso dizer com certeza, respondi eu; mas se me dá licença, vou consultar a certidão de baptismo.

      — Vá, vá... E estendendo-me a mão: — Até quando? Sabbado ficamos em casa; o barão está com umas saudades suas...

      Chegando á rua, arrependi-me de ter saído. A baroneza era uma das pessoas que mais desconfiavam de nós. Cincoenta e cinco annos, que pareciam quarenta, macia, risonha, vestigios de belleza, porte elegante e maneiras finas. Não falava muito nem sempre; possuia a grande arte de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se então na cadeira, desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se estar. Os outros, não sabendo o que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo que ella olhava só, ora fixa, ora mobil, levando a astucia ao ponto de olhar ás vezes para dentro de si, porque deixava cair as palpebras; mas, como as pestanas eram rotulas, o olhar continuava o seu officio, remexendo a alma e a vida dos outros.

      A segunda pessoa era um parente de Virgilia, o Viegas, um cangalho de setenta invernos, chupado e amarellado, que padecia de um rheumatismo teimoso, de uma asthma não menos teimosa e de uma lesão do coração: era um hospital concentrado. Os olhos porém luziam de muita vida e saúde. Virgilia, nas primeiras semanas, não lhe tinha medo nenhum; dizia-me que, quando o Viegas parecia espreitar, com o olhar fixo, estava simplesmente contando dinheiro. Com effeito, era um grande avaro.

      Havia ainda o primo de Virgilia, o Luiz Dutra, que eu, entretanto, desarmava á força de lhe falar nos versos e prosas, e de o apresentar aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome á pessoa, se mostravam contentes da apresentação, não ha duvida que o Luiz Dutra exultava de felicidade; mas eu curava-me da felicidade com a esperança de que elle nos não denunciasse nunca. Havia, emfim, umas duas ou tres senhoras, vários gamenhos, e os famulos, que naturalmente se desforravam assim da condição servil, e tudo isso constituia uma verdadeira floresta de olheiros e escutas, por entre os quaes tinhamos de resvalar com a tactica e maciez das cobras.

      66

      As pernas

      Ora, emquanto eu pensava naquella gente, iam-me as pernas levando, ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei á porta do hotel Pharoux. De costume jantava ahi; mas, não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da acção me cabe, e sim ás pernas, que a fizeram. Abençoadas pernas! E ha quem vos trate com desdem ou indifferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quando vos fatigaveis, quando não podieis ir além de certo ponto, e me deixaveis com o desejo a avoaçar, á semelhança de gallinha atada pelos pés.

      Aquelle caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós deixastes á minha cabeça o trabalho de pensarem Virgilia, e dissestes uma á outra: — Elle precisa comer, são horas de jantar, vamos levai-o ao Pharoux; dividamos a consciencia delle, uma parte fique lá com a dama, tomemos nós a outra, para que elle vá direito, não abalroe as gentes e as carroças, tire