Mestres da Poesia - Mário de Andrade. Mário de Andrade

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Название Mestres da Poesia - Mário de Andrade
Автор произведения Mário de Andrade
Жанр Языкознание
Серия Mestres da Poesia
Издательство Языкознание
Год выпуска 0
isbn 9783969443712



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celeiros de novo se encherão.

      Mas o trigo abastoso dos celeiros

      relembrará o sangue, a vida,

      os penosos momentos derradeiros

      duma geração toda destruída…

      Olhai! hoje o trigal é mais verde e mais forte!

      O chão foi adubado a carne e sangue…

      Que importa haja caído um exército exangue,

      se deu a vida ao trigo tanta morte!

      Este é o trigo que é pão e alento!

      Vós que matastes com luxúria e sanha,

      vinde buscar o prêmio: é o alimento…

      Ei-lo: em raudal, em nuvem, em montanha!

      Este é o trigo que nutre e revigora!

      É para todos! Basta abrir as mãos!

      Vinde buscá-lo!… – Vamos ver agora,

      quem comerá a carne dos irmãos!

      Este livro é teu, Saudade do lar; única fada que, espero, concitará os homens ao mútuo perdão, fazendo das trincheiras e das arenas de batalha a mais trágica das solidões.

      Paulicéia Desvairada

      Mestre querido.

      Nas muitas horas breves que me fizestes ganhar a vosso lado dizíeis da vossa confiança pela arte livre e sincera... Não de mim, mas de vossa experiência recebi a coragem da minha Verdade e o orgulho do meu Ideal. Permiti-me que ora vos oferte este livro que de vós me veio. Prouvera Deus! nunca vos pertube a dúvida feroz de Adriano Sixte... Mas não sei, Mestre, se me perdoareis a distância mediada entre estes poemas e vossas altíssimas lições... Recebei no vosso perdão o esforço do escolhido por vós para único discípulo; daquele que neste momento de martírio muito a medo inda vos chama o seu Guia, o seu Mestre, o seu Senhor.

      Mário de Andrade

      14 de dezembro de 1921

      S. PAULO

      Prefácio interessantíssimo

       "Dans mon pays de fiel et d'or j'en suis la loi”. E. Verhaeren

      1 Leitor: Está fundado o Desvairismo.

      2 Este prefácio, apesar de interessante, inútil.

      3 Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.

      4 Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo.

      5 Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.

      6 E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma sô vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.

      7 Livro evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova, filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres, do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia... “tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e efêmeros, para apanhar nele a humanidade”... Sou passadista, confesso.

      8 “Este Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo autor. Maomé não é profeta, é um homem que faz versos. Que se apresente com algum sinal revelador do seu destino, como os antigos profetas". Talvez digam de mim o que disseram do criador de Alá. Diferença cabal entre nós dois: Maomé apresentava-se como profeta; julguei mais conveniente apresentar-me como louco.

      9 Você já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mailarmé? Verhaeren?

      10 Perto de dez anos metrifiquei, rimei. Exemplo?

      ARTISTA

      O meu desejo é ser pintor — Lionardo,

      cujo ideal em piedades se acrisola;

      fazendo abrir-se ao mundo a ampla corola

      do sonho ilustre que em meu peito guardo...

      Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo

      da vida, a cor da veneziana escola,

      dar tons de rosa e de ouro, por esmola,

      a quanto houver de penedia ou cardo.

      Quando encontrar o manancial das tintas

      e os pincéis exaltados com que pintas,

      Veronese! teus quadros e teus frisos,

      irei morar onde as Desgraças moram;

      e viverei de colorir sorrisos

      nos lábios dos que imprecam ou que choram!

      11 Os Srs. Laurindo de Brito, Martins Fontes, Paulo Setúbal, embora não tenham evidentemente a envergadura de Vicente de Carvalho ou de Francisca Júlia, publicam seus versos. E fazem muito bem. Podia, como eles, publicar meus versos metrificados.

      12 Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo. Oswald de

      Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiriam minhas idéias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio como esta grita. Andarei a vida de braços no ar, como o "Indiferente" de Watteau.

      13 "Alguns leitores ao lerem estas frases (poesia citada) não compreenderam logo. Creio mesmo que é impossível compreender inteiramente à primeira leitura pensamentos assim esquematizados sem uma certa prática. Nem é nisso que um poeta pode queixar-se dos seus leitores. No que estes se tornam condenáveis é em não pensar que um autor que assina não escreve asnidades pelo simples prazer de experimentar tinta; e que, sob essa extravagância aparente havia um sentido porventura interessantíssimo, que havia qualquer coisa por compreender". João Epstein.

      14 Há neste mundo um senhor chamado Zdislas Milner. Entretanto escreveu isto: "O fato duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas, não dá a medida do seu valor”. Perdoe-me dar algum valor a meu livro. Não há pai que, sendo pai, abandone o filho corcunda que se afoga; para salvar o lindo herdeiro do vizinho. A ama-de-leite do conto foi uma grandíssima cabotina desnaturada.

      15 Todo escritor acredita na valia do que escreve. Si mostra é por vaidade. Si não mostra é por vaidade também.

      16 Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.

      17 O ridículo é muitas vezes subjetivo. Independe do maior ou menor alvo de quem o sofre. Criamô-lo para vestir com ele quem fere nosso orgulho, ignorância, esterilidade.