A agua profunda. Paul Bourget

Читать онлайн.
Название A agua profunda
Автор произведения Paul Bourget
Жанр Зарубежная классика
Серия
Издательство Зарубежная классика
Год выпуска 0
isbn



Скачать книгу

surprehendia um d'estes indicios da persistente affeição de Norberto por aquella que detestava, com um odio misturado de remorsos, redobrava de sedução junto d'elle.

      Tinha o maior interesse em dominar cada vez mais esse homem, e todavia via-se forçada a prendel-o apenas pelas mais obscuras fraquezas do seu ser e a seduzil-o pela sensualidade.

      N'este brutal dominio era ella a mais forte e esta evidencia rebaixando-a aos seus proprios olhos, mais excitava ainda a sua inveja.

      Calcule-se agora o resentimento que devia produzir n'esta alma perturbada, completamente minada por pensamentos d'esta ordem, a seguinte inexperada descoberta: A duqueza de Chalinhy não era o que parecia? Tinha um segredo na sua vida? Esta irreprehensivel esposa, cujo marido a si proprio não perdoava o trahil-a, corria Paris n'um trem, emquanto seu marido a julgava em casa muito resguardada? Tinha encontros clandestinos, deixando a carruagem á porta d'uma casa com varias entradas – exactamente como fazia a propria Joanna, quando ia encontrar-se com Chalinhy? Este modelo de virtudes, cujo elogio tanto a havia humilhado desde creança e ainda hoje a humilhava mais cruelmente, não passava d'uma hypocrita, d'uma comediante? Era possivel?

      III

      Primeiros esforços

      É possivel? Joanna tinha os maiores desejos de responder «sim» a esta pergunta, para que o seu pensamento se apressasse a colligir e amontoar os argumentos que podiam confirmar esta inexperada, esta fulminante descoberta.

      Quando viu Valentina fechar a porta da carruagem que a conduzia para um recanto occulto d'esse grande Paris – tão propicio a encontros mysteriosos, – invadiu-a uma violenta commoção.

      N'um só momento, o procedimento da sua orgulhosa prima tinha-a rehabilitado aos seus proprios olhos, rebaixando aquella ao seu nivel.

      E, posto que o facto de Valentina ter abandonado a carruagem á porta do grande armazem, lhe provasse que a sua primeira supposição era racional, a sua excitação tornára-se tão viva que se não sentia capaz de esperar – o que era natural – que a senhora de Chalinhy voltasse, a fim de verificar a attitude d'esta, interrogal-a mesmo e observar o seu natural embaraço.

      Bastar-lhe-hia metter-se no coupé abandonado, de maneira que no momento da entrada, depois da visita clandestina, a marqueza a encontrasse na sua frente e fosse violentada a confessar tacitamente a falta, só pela natural confusão.

      Um tal procedimento exigia, porém, um sangue frio de que Joanna se não julgava capaz. Mostraria logo pela sua propria perturbação, que espionava a rival. E esta, advertida por aquella fórma, dominar-se-hia, depois de passada a primeira impressão. Posta de sobre aviso, procuraria, de futuro, desnortear qualquer curiosidade que pretendesse penetrar mais intimamente no segredo que, até ao presente, tão bem tinha sabido occultar. Não. Para chegar a saber se effectivamente Valentina tinha qualquer mácula na sua vida, a principal condição era que esta nem sequer suspeitasse da descoberta. A primeira idêa de Joanna de Node, em presença do sobresalto d'uma tal revelação, foi fugir, para não ser vista pela prima, e ir para casa. Lá meditaria sobre o meio mais seguro de não perder o fio que um phantastico acaso acabava de pôr nas suas mãos, e que não abandonaria mais. Parecia-lhe até imprudente que qualquer pessoa da sua intimidade a encontrasse na visinhança do grande armazem, e podesse denunciar a sua estada ali, n'esta tarde, á marqueza de Chalinhy.

      Só conseguiu tranquilisar-se, depois de ter subido para a carruagem, e dito ao cocheiro que a conduzisse á rua Barbet-de-Jouy.

      – «É possivel?..» repetia ainda emquanto o cavallo d'aluguer da sua carruagem seguia ao longo das Tulherias, e depois pelo caes e ponte de Solferino. Mesmo contra sua vontade, tantas provas de seriedade dadas por Valentina desde a mais tenra infancia, influenciavam no seu espirito, destruiam a suspeita, luctavam contra a injuriosa hypothese sugerida repentinamente pelo indicio implacavelmente revelador.

      Ha mulheres que praticam a caridade occultamente.

      E se Valentina fosse a casa d'alguns pobres, modestamente, sem ir na sua carruagem, porque esses pobres habitavam n'alguns bairros escusos, onde a sua equipagem causasse escandalo, ou o cocheiro e trintanario corressem risco de ser insultados?..

      Mas n'este caso teria entrado no armazem como uma criminosa, temendo evidentemente ser seguida? Sahiria com aquella precipitação e em taes condicções?

      Todos os bairros populares ficam, hoje, nas proximidades dos boulevards ou de qualquer praça, onde uma mulher rica póde ir com os seus cavallos, sem necessitar servir-se de carruagem extranha…

      «Tel-a-hia Norberto prohibido de dar esmolas?..

      «Mas isso é facil de saber. Basta-me perguntar-lh'o…» Fez com a mão o gesto de apertar a pequena esphera de cautchú do aparelho que serve para chamar o cocheiro… Ia dar-lhe ordem para, de caminho, parar na rua Varenne. Eram as commodidades que a sua qualidade de prima proporcionava ao adulterio.

      Deixou, porem, cahir a esphera sem a ter comprimido: «Seria perdel-a se estava culpada, isso não faria ella.»

      Uma primeira tentação – nem sequer a sombra d'uma denuncia – passára rapidamente pelo seu pensamento, e o mesmo sentimento que, ha annos, a fazia invejar Valentina, apresentava esta agora aos seus proprios olhos, n'uma attitude generosa mas não sem uns laivos da sua habitual acrimonia.

      «Não o faria…» repetia ainda. «E o que aproveito eu com isso? Não sei, porventura, que Norberto não se preocupa mesmo nada com os seus actos? Que deposita n'ella a mais absoluta confiança. Tambem eu a tinha. E igual. Não se faz, porem, o que acabo de lhe ver fazer, sem haver para isso muito poderosos motivos…»

      – Porque, emfim, podia ser vista por qualquer outra pessoa que não fosse eu e que não seria certamente tão indulgente…

      Onde iria ella?.. Ah! Eu o saberei! Mas como?

      Era já noite e a baroneza de Node entrara em casa, passado muito tempo, sem que, atravez d'essas multiplas occupações d'uma tarde toda: – escrever bilhetes, receber visitas intimas, fazer a sua toilette para a noite – cessasse de dirigir a si mesma esta pergunta, para que não obtinha resposta: «Sim, como?»

      Se taes pesquizas são já difficeis e trabalhosas para um homem que tem o previlegio de poder andar por toda a parte, quasi sem ser notado, para uma mulher, nova, bonita e um tanto elegante, tornam-se impossiveis. Deve-se pensar. Não lhe é permitido sahir de casa senão vestida com fato proprio da sua classe. Basta isto para limitar muito o seu campo d'acção. Ha agencias particulares cujos prospectos, com promessas de segredo absoluto, pontualidade e rapidez, são enviados, de tempos a tempos, pelo correio, ás diversas pessoas que, por qualquer motivo, figuram em um dos numerosos annuarios do mundo parisiense, grande ou pequeno. Joanna tinha muitas vezes ouvido falar a alguns homens do meio em que vivia havia dez annos, do perigo de similhantes processos, para se expôr, de caso pensado, em emprezas certas de exploração e talvez de chantage.

      Revelar a policias incompetentes o vehemente desejo de saber o segredo de sua prima, não era pol-os ao corrente de outro segredo – o seu?

      Estes obstaculos, levantados deante da curiosidade do mundo, explicam como tantas historias adivinhadas e assacadas á bocca pequena, ficam sempre inverificadas, e, portanto, facilmente negaveis. Poucas pessoas teem geralmente um tão grande interesse em as conhecer nos seus mais intimos e insignificantes detalhes, que se aventurem a arrostar com tantas difficuldades.

      A mór parte permanece n'uma incerteza que lhes permitte misturar justos indicios com infames calumnias, alliviando a sua consciencia com estas phrases classicas:

      «Em todo o caso se não é verdade, podia muito bem sel-o!.. – Se é possivel acreditar-se tudo quanto se diz!.. – Eu cá nada vi, e isto são coisas tão graves!..» – indulgentes formulas tão deploraveis como os ditos maliciosos que pretendem attenuar.

      Attestam bem quanta leviandade ha nas conversas dos salões e dos clubs, e tambem que n'ellas caminham a par o indifferentismo e a ferocidade!

      Mas a baroneza de Node não se achava em presença de um «diz-se», tratava-se d'um facto, com consequencias funestas!

      O