Название | Mulheres transatlânticas |
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Автор произведения | Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza |
Жанр | Философия |
Серия | |
Издательство | Философия |
Год выпуска | 0 |
isbn | 9786559433278 |
Antes é necessário verificar que nas Américas, Bem Viver é:
… segundo Sólon (2017) em obra organizada sobre Alternativas Sistêmicas, é um termo que está em disputa. Proveniente de comunidades andinas, ele é na verdade uma concepção filosófica, uma cosmovisão sobre a relação entre seres humanos e natureza (2017:17). Há algumas décadas atrás, recebia outras denominações, como: qamaña (aymara) e o sumaq kawasay (quéchua). O Bem Viver desponta no cenário atual, sobretudo, entre os setores de esquerda no início do século XXI, tendo conquistado ampla visibilidade nos governos de Evo Morales na Bolívia (2006) e de Rafael Correa no Equador (2007). Ainda que anunciassem um novo momento político de reconhecimento da população indígena nestes territórios, para Sólon (2017), o conceito de Bem Viver fora reduzido na versão equatoriana a uma visão de direitos, e no caso boliviano, transformado em uma perspectiva ético-moral. O modelo desenvolvimentista destas sociedades seguiu não sendo confrontado e o conceito assumiu um caráter simbólico, instrumental, do campo dos princípios a serem alcançados. (Oliveira, 2019:26)
Desde a leitura do texto, este termo é aproximado à cosmovisão ameríndia, calcada no entendimento sobre a Mãe Terra – Pachamama – entre outras denominações. Tenta explicar a busca do equilíbrio, a complementaridade dos diversos, na convivência com a multipolaridade – a visão do todo ou a totalidade na Mãe Terra que questiona o projeto desenvolvimentista que vem do capitalismo como nos traduz Pablo Sólon (2017).
Bem Viver está dentro de uma concepção de vida cíclica, em que o tempo entre passado e presente vivem juntos, recriando futuro; em que humanidade e natureza pertencem igualitariamente ao mesmo cosmos, refutando dualidades e enunciando a necessidade da complementaridade com a diferença. Assim, se pertence e se atua com pressupostos de distribuição de riquezas, de trabalho coletivo e vida comunitária, e as desigualdades devem ser sempre ajustadas através do pensamento sobre equidade.
Bem Viver, portanto, também é uma reflexão das mulheres negras. Aparece produzido na resistência a estes séculos de violências e também é considerado como a possibilidade de existência individual e coletiva das pessoas negras (homens e mulheres), em que seus direitos primordiais possam existir, serem respeitados, assim como aquilo que produzem possam ser considerados como saberes e conhecimentos, não passíveis à expropriação.
No contexto brasileiro, e acredito que no sul-americano seja similar, há um enorme número de mortes violentas da população masculina e jovem negra: seja por violência policial, homicídios ou acidentes. Ou seja, o Bem Viver engloba a humanidade de mulheres e homens negros em relação àa sua cidadania. Em outras palavras, o Bem Viver de mulheres negras passa por lutar pela vida dos homens que fazem parte de suas vidas: pais, maridos, filhos e irmãos.
O Bem Viver tem muita proximidade à filosofia Ubuntu (Noguera, 2012), uma filosofia africana que tem a premissa sobre a existência humana, que somente se justifica por meio de outras existências, entendendo que esta outra existência é diversa, complexa e necessária para a complementaridade entre indivíduos e as coisas.
Assim, a proposta de justiça social e democracia pode se radicalizar e se ampliar, aceitar a diversidade de narrativas, se mostrar pluriversa e criar a possibilidade de constituir as cosmovisões amefricanas (González, 2018) – ameríndias e africanas – que se dão ao partilhar valores que são imprescindíveis para a conformação das comunidades marginalizadas, empobrecidas e submetidas à subalternidade, e que se apresentam como modelos similares, por isso, utilizar o termo Bem Viver cabe em sua complexidade para estas realidades, assim como Ubuntu, valores que são fundamentais e civilizatórios de toda a África.
O pensamento sobre equidade, trabalho associativo e complementar, respeito à diferença, entre outros, também faz parte do que chamamos de valores civilizatórios de matriz africana, muito bem descrito por Azoilda Trindade:
Reconhecemos a importância do Axé, da ENERGIA VITAL, da potência de vida presente em cada ser vivo, para que, num movimento de CIRCULARIDADE, esta energia circule, se renove, se mova, se expanda, transcenda e não hierarquize as diferenças reconhecidas na CORPOREIDADE do visível e do invisível. A energia vital é circular e se materializa nos corpos, não só nos humanos, mas nos seres vivos em geral, nos reinos animal, vegetal e mineral. “Na Natureza nada se cria, tudo se transforma”, “Tudo muda o tempo todo no mundo”, “… essa metamorfose ambulante”. Se estamos em constante devir, vir a ser, é fundamental a preservação da MEMÓRIA e o respeito a quem veio antes, a quem sobreviveu. É importante o respeito à ANCESTRALIDADE, também presente no mundo de territórios diversos (TERRITORIALIDADE). Territórios sagrados (RELIGIOSIDADE) porque lugares de memória, memória ancestral, memórias a serem preservadas como relíquias, memórias comuns, coletivas, tecidas e compartilhadas por processos de COOPERAÇÃO e COMUNITARISMO, por ORALIDADES, pela palavra, pelos corpos diversos, singulares e plurais (CORPOREIDADES), pela música (MUSICALIDADE) e, sobretudo, por que não, pelo prazer de viver – LUDICIDADE. Ao redescobrirmos os valores civilizatórios afro-brasileiros, podemos compreender que vivemos embates terríveis, sociais e históricos, determinados pelo racismo; perceber que não estamos condenados a um mundo euro-norte-centrado, a um mundo masculino, branco, burguês, monoteísta, heterossexual, hierarquizado… Outros modos de ser, fazer, brincar e interagir existem. (Azoilda Trindade)6
Azoilda Trindade destaca a África na sua diversidade e como os africanos e seus descendentes implantaram, marcaram e instituíram no Brasil valores inscritos na memORÍa – termo descrito por Beatriz Nascimento trazendo Orí (cabeça na língua iorubá) como possibilitador de uma memória coletiva ancorada no corpo negro e o quilombo como território corporal.
O africano vem com as suas nações. Mesmo que fossem fragmentadas em alguns momentos, as nações guardavam seus nomes e reproduziam isso em formas mitológicas e simbólicas. E Orí é a palavra mais oculta porque é o homem, sou EU. Porque é o indivíduo, a identidade. A identidade individual, coletiva, política, histórica. (Nascimento, 2018:343)
Por tudo isso, aproximamos o movimento de mulheres negras ao movimento afro, latino-americano e caribenho, que se entende e se harmoniza pelos valores do Bem Viver ou em palavras originárias africanas Ubuntu ou originárias ladinas Pachamama que,, lançando a possibilidade de mobilização em torno destes pressupostos, olha para os povos e comunidades invisibilizados neste processo neoliberal que tem crescido e imputado novas formas de violências. Muitas dessas regidas pelo discurso meritocrático e xenofóbico.
O movimento de mulheres negras, quando reivindica Bem Viver, está pensando nos direitos primordiais. Uma reivindicação para além dos direitos humanos (constituídos pela Declaração “Universal” dos Direitos Humanos de 1948), pois a humanidade das pessoas racializadas é enxergada (e os fatos de violência e morte em massa dessas pessoas vêm confirmando isso) de forma diferenciada tanto privada quanto publicamente.
O que quero expor como direitos primordiais são: vida, saúde, plena cidadania, educação, alimentação e moradia. Que determinariam a garantia de uma possível harmonia no viver e estar destes grupos. O que, na realidade, em termos de diretos ainda pouco se avançou para o que depois da escravidão foi determinado, para as comunidades negras e as poucas indígenas que restaram. Obviamente, observadas as proporções e as formas de expropriação física, mental e moral dos corpos negros, hoje podemos, junto com Achille Mbembe, dizer que há um processo necropolítico de matança de nosso povo (Mbembe, 2018).
Esta política de hierarquização de vidas escalona a valoração e escolhas que acabam deixando morrer ou fazendo viver, prioriza um contexto racista e neoliberal para que se estabeleça inclusive a menor valia de trabalho e prestação de serviços. Assim, pode-se rapidamente entender uma das coisas mais básicas das sociedades colonizadas, o serviço doméstico de mulheres racializadas. Visualizadas em imagens de controle (Collins, 2019) que as designam sempre para as funções de serviço doméstico, serviço sexual ou serviços de maternagem.