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e disse com ênfase e segurança:

      — O aviso de 84 trata de ortografia.

      O diretor olhou o subalterno com admiração e mais ficou considerando as suas qualidades de empregado zeloso, inteligente e... assíduo. Foi informado de que a legislação era omissa no tocante à língua em que deviam ser escritos os documentos oficiais; entretanto não parecia regular usar uma que não fosse a do país.

      O ministro, tendo em vista esta informação e várias outras consultas, devolveu o ofício e censurou o arsenal.

      Que manhã foi essa no arsenal! Os tímpanos soavam furiosamente, os contínuos andavam numa dobadoura terrível e a toda hora perguntavam pelo secretário que tardava em chegar.

      Censurado! monologava o diretor, Ia-se por água abaixo o seu generalato. Viver tantos anos a sonhar com aquelas estrelas e elas se escapavam assim, talvez por causa da molecagem de um escriturário!

      Ainda se a situação mudasse... Mas qual!

      O secretário chegou, foi ao gabinete do diretor. Inteirado do motivo, examinou o ofício e pela letra conheceu que fora Quaresma que o escrevera. Mande-o cá, disse o coronel. O major encaminhou-se pensando nuns versos tupis que lera de manhã.

      — Então o senhor leva a divertir-se comigo, não é?

      — Como? fez Quaresma espantado.

      — Quem escreveu isso?

      O major nem quis examinar o papel. Viu a letra, lembrou-se da distração e confessou com firmeza:

      — Fui eu.

      — Então confessa?

      — Pois não. Mas Vossa Excelência não sabe...

      — Não sabe! que diz?

      O diretor levantou-se da cadeira, com os lábios brancos e a mão levantada à altura da cabeça. Tinha sido ofendido três vezes: na sua honra individual, na honra de sua casta e na do estabelecimento de ensino que frequentara, a escola da Praia Vermelha, o primeiro estabelecimento científico do mundo. Além disso, escrevera no Pritaneu, a revista da escola, um conto - A saudade - produção muito elogiada pelos colegas. Dessa forma, tendo em todos os exames sido aprovado plenamente e com distinção, uma dupla coroa de sábio e artista cingia-lhe a fronte, tantos títulos valiosos e raros de se encontrarem reunidos mesmo em Descartes ou Shakespeare transformavam aquele - não sabe - de um amanuense em ofensa profunda, em injúria.

      — Não sabe! Como é que o senhor ousa dizer-me isto! Tem o senhor porventura o curso de Benjamim Constant? Sabe o senhor matemática, astronomia, física, química, sociologia e moral? Como ousa então? Pois o senhor pensa que por ter lido uns romances e saber um francesinho aí, pode ombrear-se com quem tirou grau nove em cálculo, dez em mecânica, oito em astronomia, dez em hidráulica, nove em descritiva? Então?!

      E o homem sacudia furiosamente a mão e olhava ferozmente para Quaresma, que já se julgava fuzilado.

      — Mas, senhor coronel!...

      — Não tem mas, não tem nada! Considere-se suspenso até segunda ordem.

      Quaresma era doce, bom e modesto. Nunca fora seu propósito duvidar da sabedoria do seu diretor. Ele não tinha nenhuma pretensão a sábio e pronunciara a frase para começar a desculpa; mas, quando viu aquela enxurrada de saber, de títulos, a sobrenadar em águas tão furiosas, perdeu o fio do pensamento, a fala, as ideias e nada mais soube nem pôde dizer.

      Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel, que não deixava de olhá-lo furiosamente, indignadamente, ferozmente, como quem foi ferido em todas as fibras do seu ser. Saiu afinal. Chegando à sala do trabalho nada disse: pegou no chapéu, na bengala e atirou-se pela porta afora, cambaleando como um bêbado. Deu umas voltas, foi ao livreiro buscar uns livros. Quando ia tomar o bonde encontrou o Ricardo Coração dos Outros.

      — Cedo, hein major?

      — É verdade.

      E calaram-se ficando um diante do outro num mutismo contrafeito. Ricardo avançou algumas palavras:

      — O major, hoje, parece que tem uma idéia, um pensamento muito forte.

      — Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.

      — É bom pensar, sonhar consola.

      — Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens....

      E os dois separaram-se. O major tomou o bonde e Ricardo desceu descuidado a rua do Ouvidor, com o seu passo acanhado e as calças dobradas nas canelas, sobraçando o violão na sua armadura de camurça.

      Capítulo V: O Bibelot

      Não era a primeira vez que ela vinha ali. Mais de uma dezena já subira aquela larga escada de pedra, com grupos de mármores de Lisboa de um lado e do outro, a Caridade e Nossa Senhora da Piedade; penetrara por aquele pórtico de colunas dóricas, atravessara o átrio ladrilhado, deixando à esquerda e à direita, Pinel e Esquirol, meditando sobre o angustioso mistério da loucura; subira outra escada encerada cuidadosamente e fora ter com o padrinho lá em cima, triste e absorvido no seu sonho e na sua mania. Seu pai a trazia às vezes, aos domingos, quando vinha cumprir o piedoso dever de amizade, visitando Quaresma. Há quanto tempo estava ele ali? Ela não se lembrava ao certo; uns três ou quatro meses, se tanto.

      Só o nome da casa metia medo. O hospício! É assim como uma sepultura em vida, um semienterramento, enterramento do espírito, da razão condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem.

      A saúde não depende dela e há muitos que parecem até adquirir mais força de vida, prolongar a existência, quando ela se evola não se sabe por que orifício do corpo e para onde.

      Com que terror, uma espécie de pavor de coisa sobrenatural, espanto de inimigo invisível e onipresente, não ouvia a gente pobre referir-se ao estabelecimento da Praia das Saudades! Antes uma boa morte, diziam.

      No primeiro aspecto, não se compreendia bem esse pasmo, esse espanto, esse terror do povo por aquela casa imensa, severa e grave, meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janelas gradeadas, a se estender por uns centos de metros, em face do mar imenso e verde, lá na entrada da baía, na Praia das Saudades. Entrava-se, viam-se uns homens calmos, pensativos, meditabundos, como monges em recolhimento e prece.

      De resto, com aquela entrada silenciosa, clara e respeitável, perdia-se logo a idéia popular da loucura; o escarcéu, os trejeitos, as fúrias, o entrechoque de tolices ditas aqui e ali.

      Não havia nada disso; era uma calma, um silêncio, uma ordem perfeitamente naturais. No fim, porém, quando se examinavam bem, na sala das visitas, aquelas faces transtornadas, aqueles ares aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheados e mergulhados em um sonho íntimo sem fim, e via-se também a excitação de uns, mais viva em face à atonia de outros, é que se sentia bem o horror da loucura, o angustioso mistério que ela encerra, feito não sei de que inexplicável fuga do espírito daquilo que se supõe o real, para se apossar e viver das aparências das coisas ou de outras aparências das mesmas.

      Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após.

      E essa mudança não começa, não se sente quando começa e quase nunca acaba. Com o seu padrinho, como fora? A princípio, aquele requerimento... Mas que era aquilo? Um capricho, uma fantasia, coisa sem importância, uma idéia de velho sem conseqüência. Depois, aquele ofício? Não tinha importância, uma simples distração, coisa que acontece a cada passo... E enfim? A loucura declarada, a torva e irônica loucura que nos tira a nossa alma e põe uma outra, que nos rebaixa... Enfim,